Complemento da Ação: 1. RELATÓRIO
O projeto de Lei ora sob análise tem como propósito a instituição no Município de Ibatiba do projeto denominado “Casa Mulher” com o objetivo de promover o acolhimento das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, no mais o referido projeto, prevê que o município “poderá” realizar parcerias com outras entidades ou órgãos públicos para a consecução do procedimento ali previstos.
É o relatório. Passo a opinar.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Da Competência suplementar prevista no art. 30, II, e a sua inaplicabilidade ao referido caso.
No que tange à competência legislativa sobre a matéria suscitada, verifica-se que, conforme prevê o inciso II do art. 30, está previsto que “Compete aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”
Segundo a doutrina de Fernanda Dias Menezes de Almeida, o Município na sua função legislativa complementar, não poderá contrariar nem as normas gerais da União, o que é óbvio, nem as normas estaduais de complementação, embora possa também detalhar estas últimas, modelando-as mais adequadamente às particularidades locais. Por fim, inexistindo as normas gerais da União, aos Municípios, tanto quanto aos Estados, se abre a possibilidade de suprir a lacuna, editando, normas gerais (Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991).
É o que explica Regina Maria Macedo Ney Ferrari, in verbis:
[...] o art. 24 refere-se apenas à União, Estados e ao Distrito Federal, não incluindo nesse elenco a figura do Município, admitindo a competência suplementar apenas em relação aos Estados. O art. 30, II, veio, de certa forma, suprir a falha do art. 24; não criando competência para o Município, mas admitido que ele tenha competência legislativa suplementar da legislação federal e estadual, naquilo que couber, ou seja, dentro dos assuntos de interesse local. (apud REIS, Elcio Fonseca. Federalismo Fiscal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p.80).
Ocorre que o tema ora tratado no presente projeto baseia-se na Lei Federal 11.340/06, a qual já tratou do tema ora mencionado e os referidos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar praticada contra mulheres.
A referida lei, em seu art. 8º, VI, preceitua que haverá cooperação entre os entes federativos e ações não governamentais para firmar instrumentos de parceria com o objetivo de implementar programas de erradicação da violência doméstica contra a mulher, senão vejamos:
Art. 8º - A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:
VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
Ainda em relação à Lei 11.340/06, o art. 35 prevê a criação e promoção pelo município, no limite de sua competência, de centros de atendimento integral e programas e campanhas para enfrentamento da violência doméstica e familiar, como se depreende abaixo:
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências:
I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;
III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta Lei.
Dessa forma, no que concerne à competência municipal, observa-se que legislação federal já tratou do tema ora referenciado, não havendo assim, espaço para suplementação legislativa do município fundamentado no art. 30, II da CF.
2.2 Leis autorizativas e o vício de iniciativa.
Por outro lado, em relação à iniciativa para o referido projeto de lei, verifica-se que ocorre um vício por se tratar de Lei Autorizativa. A lei autorizativa é aquela que se limita a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já são de sua competência.
Nesse sentido, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0179995-56.2012.8.26.000, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo traz claramente o entendimento que vigora em relação à lei autorizativa, tanto pelo referido tribunal quanto pelo Supremo Tribunal Federal:
Mencionada legislação representa ingerência na competência exclusiva do Chefe do Executivo pelo Poder Legislativo, posto ser evidente que o alcaide não precisa de autorização para exercer atos de sua competência privativa. Na linguagem legislativa autorizar tem o sentido de ordenar, e eventual desatendimento a essa quase imposição poderia, inclusive, ensejar o reconhecimento de uma postura omissiva do administrador por não praticar o ato autorizado.
Vasco Della Giustina (Leis Municipais e seu Controle Constitucional pelo Tribunal de Justiça, Livraria do Advogado, p. 168/169), ensina 'não ser possível interpretar autorização como mero sinônimo de opção pra cumprir ou não a lei, tendo o substantivo o sentido e o alcance de uma determinação ou imposição, não podendo falar-se em lei inócua ou decorativa, ainda que dela não decorram ônus para o Poder Executivo Municipal'.
Pondera ainda, 'A circunstância de ser a lei, meramente 'autorizativa' e não 'determinativa' não elide, não suprime, não elimina o fato de estar ela dispondo - ainda que de forma meramente 'autorizativa' - sobre matéria que é reservada à iniciativa privativa do Poder Executivo... Em suma, a natureza teleológica da lei, seja ela para 'autorizar' ou para 'determinar' não elide a inconstitucionalidade por vício de iniciativa'.
Neste passo, impende consignar que, em 17 de agosto de 2011, apreciando a Ação Direta de Inconstitucionalidade, este Colendo Órgão Especial, em acórdão de relatoria do Desembargador Ribeiro dos Santos, após fazer o registro de que: 'É pacífico o entendimento nesta r. Corte, que embora a Câmara Municipal, seja órgão meramente legislativo, somente lhe incumbe editar atos normativos de caráter genérico e abstrato'. Concluiu: 'Compete, portanto, com exclusividade ao Executivo o exercício dos atos que impliquem no gerir das atividades administrativas da cidade, a ele cabendo a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução das tarefas que lhe são atribuídas.
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo avoca para si a iniciativa de leis de efeitos concretos, equivalentes na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os Poderes'. (...) Aliás, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0203247-25.2011.8.26.0000, realizado em 14 de março de 2012, de relatoria do Desembargador Xavier de Aquino, este Colendo Órgão Especial, com base no parecer do Subprocurador-Geral de Justiça, anotou: 'Nem se argumente que se trata de mera autorização. Cuida-se, é verdade, de lei autorizativa, mas, [sic] essa qualificação não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade. A autorização legislativa não se confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da reserva de iniciativa. Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências previstas na lei'.
A propósito de tais leis, o Pretório Excelso, no julgamento da Representação n° 993/RJ, relatada pelo Ministro Néri da Silveira e publicado na RTJ, vol. 36/619, pronunciou-se nos seguintes termos: 'De observar, outrossim, que o só fato de ser autorizativa a Lei não modifica o juízo de sua validade por vício de iniciativa. Em tal sentido, decidiu esta Corte, na Representação n. 686-GB, a 06.10.1966, havendo o ilustre Ministro Evandro Lins, Relator, asseverado: 'O fato da Lei impugnada ser meramente autorizativa não lhe retira a característica da inconstitucionalidade, que a desqualifica pela raiz (...)'. Sobre o tema, portanto, se encontra pacificado o entendimento no sentido de que: 'O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Nesse sentido foi a decisão proferida no Acórdão constante do Ementário n° 1.270-1 RTJ 104/46.
Considerando que o Legislativo não precisa autorizar o Executivo a executar ato de sua competência já autorizado pela Constituição, este Colendo Órgão Especial já reconheceu a inconstitucionalidade das chamadas 'leis autorizativas', por exemplo, na ADIn n° 0153008- 17.2011.8.26.0000, na qual se afirmou que lei relacionada com a organização do Município, ainda que inculque autorização, tem comando determinativo, sendo, portanto, de iniciativa do Prefeito. Também na ADIn n° 994.09.231228-7, na qual ficou declarada a inconstitucionalidade da lei, por vício de iniciativa, sob fundamento de se submeter a controle de constitucionalidade lei autorizativa que impõe determinado comportamento à administração. E ainda na ADIn n° 0068540-23.2011.8.26.0000, proclamando a inconstitucionalidade de lei que, embora dita autorizativa, veicula comando provido de força cogente, invadindo atribuição do chefe do Executivo'.
Dessa forma, ao se estabelecer no projeto de lei que o Poder Executivo também: “poderá o Município realizar parcerias com outras Entidades ou Órgãos Públicos, para a promoção das devidas politicas públicas necessárias a acolher todas as vítimas de qualquer violência sofrida pela mulher no âmbito doméstico e familiar”, claramente percebe-se um projeto de lei buscando autorizar que o Prefeito realize atos que já são de sua competência privativa. A lei autorizativa não é cabível no ordenamento jurídico por invadir a esfera de competência de outro poder.
2.3 Da inconstitucionalidade por vício de iniciativa, fundamentado no art. 61, §1º, II, “b” da Constituição Federal e no art. 58 da LOM.
A Constituição Federal de 1988, se estabelece em seu art. 61, §1º, inciso II, alínea “b”, que são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre “organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos territórios;”. Em decorrência do princípio da simetria, verifica-se que também compete ao chefe do executivo municipal a tarefa alusiva à organização administrativa municipal.
Importante citar o ilustre doutrinador Hely Lopes Meirelles, segundo o qual são da atribuição do prefeito as atividades governamentais e administrativas do município, a seguir destacadas:
As atribuições do prefeito são de natureza governamental e administrativa: governamentais são todas aquelas de condução dos negócios públicos, de opções políticas de conveniência e oportunidade na sua realização e, por isso mesmo, insuscetíveis de controle por qualquer outro agente, órgão ou Poder; administrativas são as que visam à concretização das atividades executivas do Município, por meio de atos jurídicos sempre controláveis pelo Poder Judiciário e, em certos casos, pelo Legislativo local. (Direito Municipal Brasileiro”, 15ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2006, p. 711).
Também se destaca no art. 58 da Lei Orgânica Municipal a atribuição concedida ao prefeito para adotar as medidas administrativas a serem tomadas, in verbis:
Art. 58. Compete privativamente ao Prefeito a iniciativa de leis que disponham sobre:
III - criação, estruturação e atribuições de departamentos, Secretarias Municipais e órgão da administração pública municipal.
Como se não bastasse, válido colacionar a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Espirito Santo, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5004846-73.2023.8.08.0000, datada de 15 de abril de 2024, ao julgar projeto de lei semelhante, senão vejamos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL DE LINHARES Nº 4.070/2022. ALEGAÇÃO DE VÍCIO DE INICIATIVA E NÃO OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES. PROPOSTA LEGISLATIVA QUE CRIA ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL E IMPORTA EM AUMENTO DE DESPESAS. 3. PRESENÇA DE FUMUS BONI IURIS. PERICULUM IN MORA VERIFICADO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA 1. No âmbito da tutela de urgência, o deferimento de pedidos liminares está condicionado a presença cumulativa da relevância jurídica da pretensão (fumus boni iuris) e também da indispensabilidade da providência antecipada (periculum in mora), de modo a garantir a efetividade do resultado de futuro e provável juízo de procedência. 2. Viola o disposto nos artigos 17 e 63, parágrafo único, incisos III e VI, da Constituição Estadual (artigos 2º e 61, § 1º, inciso II, alíneas “a” e “e” da Constituição da República), a lei municipal de iniciativa parlamentar que cuida de atividades eminentemente executivas, eis que cria novas atribuições ao Poder Executivo Municipal, tratando, em última medida, de política pública de saúde municipal. Precedentes. 3. A questão analisada não se amolda àquela resguardada pelo Supremo Tribunal Federal na tese de Repercussão Geral nº 917, vez que a legislação municipal impugnada tratou da organização e de atribuições de órgãos do Poder Executivo Municipal. 4. A declaração de inconstitucionalidade de lei autorizativa se faz necessária para evitar que se consolide o entendimento no sentido de que as leis que autorizam 'aquilo que não poderia autorizar' podem existir e viger. Precedentes. 5. Periculum in mora demonstrado em razão de que, além do prejuízo ao erário em razão da execução de lei editada em contrariedade com os ditames constitucionais 6. Presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, é de se conceder medida cautelar para suspender a eficácia da Lei Municipal de Linhares nº 4.070/2022, até que sobrevenha o julgamento em definitivo da demanda.
Pelo exposto, entendemos que a referida matéria é de iniciativa privativa do prefeito, o que por sua vez, faz com que a sua proposição por meio de iniciativa parlamentar, torne referido projeto de lei inconstitucional, na forma dos dispositivos citados.
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, manifesta-se pela inconstitucionalidade formal do projeto de lei, uma vez que ocorre vício de iniciativa por se tratar de matéria de organização administrativa do Poder Executivo.
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